Sinto falta grande daquela
sensação que eu tinha quando eu colocava a chave na fechadura da porta do
apartamento e girava duas ou três vezes para abrir em direção ao meu reino. Não
tinha nada além de poucos móveis e muitos sentimentos que dançavam pelo
corredor. Era dona daquele espaço sem a menor necessidade de cuidar das
palavras, da vestimenta (se tem pouca ou nenhuma roupa), da comida que fica
posta na pia, da taça de vinho em plena terça-feira depois de corrigir pelo
menos setenta provas de Filosofia de jovens que ainda não entendem a grandeza
de refletir sobre si mesmo, o mundo e os outros. Que falta doída eu sinto do
pouco espaço do lado de fora e muito espaço do lado de dentro. Falta do mofo no
quarto e da cortina que escondia as imperfeições da parede, como fazem as
mulheres com suas maquiagens escondendo as rugas que expressam a alegria e a
tristeza de se viver! Falta de um quarto vazio que eu pudesse levar uma toalha
e ver na janela do quarto andar a cidade crescendo, vivendo e morrendo diante
dos meus olhos. Sou cosmopolita demais para morar perto de árvores. E não me
culpem por amar tanto os concretos, os desenhos dos prédios, o cheiro de
gasolina entre as ruas, as muitas pernas que andam de um lado para o outro sem
dizer bom dia e o milagre em plena luz do dia quando se vê uma pessoa sorrindo
ou chorando.
A televisão era pouco usada e,
apenas uma. Mas existia a camaradagem entre mãe e filha na escolha dos
programas. Cultura, jazz, culinária, política e entrevista... Clipes de música, seriados ou programa de
comédia da MTV. Precisava de novela nesse contexto? A cama tinha o tamanho
exato para meus sonhos, anseios, lembranças e solidão. Mas a solidão também era
companhia. Aquela branca. Aquela doce. Aquela que de repente se descobre a si
mesmo e, no final das contas, vale a pena ter.
Saudades da estante. Poucos livros.
Muitos livros. Dependia da sensação que se tinha no momento. Companheiros
fiéis. Minha grande riqueza eram os livros postos de forma bagunçada. Gostava de
colocar Sartre ao lado de Guimarães Rosa e ficava imaginando uma história
dentro das histórias. E se Sartre caminhasse nos sertões de Guimarães, qual
seria o final do existencialismo afinal? E se Martha Medeiros resolvesse
escrever para Lispector e dizer que a vida no século XXI é muito mais
entediante e, por isso, seria mais forte ainda seus livros e contos. Platão,
Aristóteles conviviam na terceira fileira. Hoje eles se escondem dentro do
armário como os prisioneiros da caverna do filósofo sem condição alguma de
ensinar a beleza do saber. Gastava horas observando a velhice dos livros. Cada
qual , assim como eu, carrega em si muita história. Livros adotados em sebos,
livros resgatados, livros que cortaram oceanos para hoje fazerem parte de minha
vida.
Saudade do jazz que se ouvia
enquanto varria a casa e também a alma. Saudade de não precisar preocupar com nada
ou quase nada! Saudade de ser egoísta e ser mais eu. Saudade de me pertencer
sem a invasão autorizada dos outros em minha vida.
Qual é o preço do amor? Diria
hoje que é alta demais. Afinal, quanto vale ser livre no quarto andar de um
prédio no centro da cidade?
Um comentário:
Amei este texto. Gosto muito dos teus textos, mas esse... lindo!
Qual é o verdadeiro preço do amor? Difícil dizer, não é?!
Beijos!
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